SINTO, LOGO EXISTO: A FILOSOFIA ESTÉTICA DE MERLEAU-PONTY
Tradicionalmente, a filosofia ocidental considera a percepção como mera coadjuvante do conhecimento humano, em alguns casos, ela até atrapalha na busca da “verdade”. Cartesianamente, os sentidos seriam fontes do engano, do erro de avaliação, da ilusão sobre o dado empírico. É por isso que a cultura filosófica ocidental será direcionada para a atividade intelectual, cognitiva, racional, desprezando a percepção e a sensibilidade. Não é assim com Merleau-Ponty.
O filósofo francês Maurice Merleau-Ponty nasceu em 1908 e faleceu em 1961. Ponty foi um homem da esquerda marxista francesa (que depois irá se afastar, incluindo uma briga com Sartre) e foi chamado de “existencialista cristão” (ele era católico). As suas reflexões são interessantíssimas para uma visão espiritual da vida, para a centralidade da experiência do corpo e para a arte.
Sua obra central é “A fenomenologia da percepção” onde “critica a psicologia clássica, a fisiologia mecanicista e o cogito racionalista de Descartes por meio do retorno ao fenômeno da percepção segundo a perspectiva fenomenológica. Para o filósofo, perceber não é uma pura sensação e nem tampouco um julgamento intelectual, mas a experiência de se dirigir, intencionalmente, ao mundo pelo corpo.”
Neste livrinho, escrito pelo psicanalista e filósofo brasileiro Iraquitan de Oliveira Caminha (“10 lições sobre Merleau-Ponty”. Petrópolis, RJ : Vozes, 2019), quero destacar alguns pontos que me parecem centrais:
1- Desinflar o ego cartesiano e retomar a postura do não-saber e do espanto diante do mundo. Diz Caminha:
“Para o pensador francês, há uma impossibilidade radical de o filósofo alcançar qualquer tipo de superação definitiva das contradições humanas. Ele deve sempre adotar a postura do não-saber.”
Não se trata de um elogio da ignorância, mas de compreender “o papel do filósofo” como aquele que deve “oscilar entre a ignorância e o saber”.
2- A filosofia é uma obra inacabada e não uma sistematização de verdade totais sobre o mundo. Para Ponty, “o incessante recomeçar da tarefa filosófica é a expressão de renúncia a toda cristalização do pensar num sistema acabado e fechado. Tal perspectiva de compreensão da Filosofia como inacabada é derivada da concepção de que o real é sempre percebido e que não há percepção sem mundo. A percepção é a experiência originária de se dirigir para o mundo, que renova constantemente o pensamento filosófico. Nesse sentido, a Filosofia é considerada, por Merleau- Ponty, como a perpétua experiência de reaprender a ver o mundo.”
3- O mundo é o que percebo e o que percebo é o mundo, portanto, cada sujeito vive dentro de uma experiência de mundo que lhe é peculiar, mas não fechada, nem incomunicável. Nessa perspectiva, “não devemos nos perguntar se nós percebemos realmente um mundo; devemos dizer ao contrário: o mundo é isto que nós percebemos” (MERLEAU-PONTY, 1992a, p. XI). A percepção nos dá, assim, um saber primordial que fundamenta para sempre nosso poder de reconhecer a existência do mundo como uma evidência de fato independentemente de esclarecimentos anteriores ou posteriores.”
Segundo Merleau-Ponty “o que é dado não é a coisa só, mas a experiência da coisa”. Sendo uma experiência — e não um dado objetivo, exterior e inquestionável — não podemos cair na ingenuidade de achar que a percepção é algo “puro”, “desinteressado”, “neutro”, “isento” ou não ideológico. Porque não existe experiência perceptiva pura, pois nossa percepção não é uma vivência desinteressada, pois “para que percebamos as coisas, precisamos “vivê-las”” e ao vivê-las ao deu a estas experiências as cores, os sabores, os sentimentos e os valores e as crenças que me habitam corporalmente.
4- E o que é o corpo para Merleau-Ponty?
Dito de forma simples e direta, o corpo é a nossa totalidade. Ponty tentará fugir do dualismo cartesiano que marca a nossa percepção de corpo como algo dividido (corpo e alma, matéria e espírito, corpo e consciência). Diz Caminha:
“Quando Merleau-Ponty se refere ao corpo próprio ou vivido, está bem claro que não é o corpo considerado de maneira totalmente objetiva, sempre visto como um dado em terceira pessoa, quer dizer, como um “ele é” coisificado (Körper). Isso significa que o corpo não é uma coisa material, de natureza inanimada, ou associada a uma consciência separada de uma vida sensível. O corpo próprio é, para Merleau-Ponty, uma existência indivisa que nós vivemos como uma vida que sempre nos pertence (Leib). Devemos notar que, quando Merleau-Ponty se refere ao corpo, enquanto percebido, ele o considera como fenomenal, cujo modo de ser para nós não passa pelo mundo objetivo considerado em si. O corpo que nós vivemos não é um objeto transparente, que se introduz em nosso campo de visão como um objeto exterior, mas, essencialmente, uma vida que assumimos como uma estrutura sempre presente em todas as nossas ações.”
5- E como este “eu-corpo” percebe o mundo?
“Segundo Merleau-Ponty, “a filosofia não é o reflexo de uma verdade prévia, mas, como a arte, a realização de uma verdade” (MERLEAU-PONTY, 1992a, p. XV). Não obstante, essa verdade encontra sempre nosso mundo, onde já há uma “razão preexistente”. Isso quer dizer que o único “logos que preexiste” é o próprio mundo. No fundo, a perspectiva filosófica de Merleau-Ponty é de mostrar que, de um lado, está certa a premissa de que para descobrir uma paisagem escondida atrás de uma colina, nosso olhar precisa encontrar um lugar que dê acesso ao aparecer de tal espetáculo, mas, de outro, é incontestável que essa paisagem não apareceria ao nosso olhar se já não estivesse presente no mundo percebido. Aquele que percebe não é uma consciência que ordena uma matéria sensível da qual ela possuiria a “lei ideal” das formas percebidas. Nesse sentido, a experiência perceptiva comporta, por princípio, a contradição da imanência e da transcendência. Portanto, a percepção é, ao mesmo tempo, vivida por aquele que vê e a expressão do mundo que se mostra. É por essa razão que Merleau-Ponty (1992a) afirma que o mundo é mais velho do que a consciência.”
Antes de nossa percepção de mundo, existe um mundo, um logos que é anterior a nós. A experiência da percepção não é algo objetivo e asséptico como no empirismo e nem é uma experiência universal e “desencarnada” conduzida pelo cogito, pelo intelecto humano. A experiência da percepção, deste eu-corpo, é um todo complexo, é uma experiência da verdade — e não a verdade em sentido absoluto —, é um encontro e, digo eu, uma construção social.
Ao perceber o mundo eu sinto, ao sentir sou afetado e afetado pelo que sinto e percebo do mundo, vivo uma experiência que é corporal e que envolve minhas intenções, meus desejos, não sendo eu mero objeto passivo. Somos então sujeitos de percepção. Caminha explica:
“Sentir não é, para Merleau-Ponty, apenas uma reação motora passiva aos estímulos do ambiente. É bem verdade que toda sensação é sempre de alguma coisa. Logo, só posso dizer que sinto o vermelho porque sou afetado por essa cor. Todavia, essa cor só se define como uma cor identificável por meio de uma série aberta de experiências possíveis operadas por um corpo que se faz sujeito no ato de sentir. Aquele que percebe é antes de tudo um ser de potência ou de possibilidades. Nasce aqui uma questão que é da ordem do uso do corpo, problema típico do mundo humano. Se fossemos máquinas que registram e decodificam informações sensíveis, não precisaríamos colocar o problema do sujeito da percepção.”
6- A carne como superação do dualismo cartesiano de corpo/mente.
Este é um dos alvos da filosofia de Merleau-Ponty. Desfazer-se de nosso passado dualista, mas o dualismo persiste. Ponty fala de um corpo que é físico e psíquico ou physis e psyque. De um eu-corpo que é natureza e cultura. Mas como manter isso unido?
É quando Merleau-Ponty desenvolve o conceito de carne — inspiração católica? — para falar em totalidade corpórea, experiência impossível de delimitar fornteiras dualistas, posto que physis e psyque (natureza e cultura, sujeito e objeto) são uma única coisa: carne.
“É pelo conceito de carne que Merleau-Ponty propõe superar a clivagem ou dicotomia sujeito/objeto, considerando a experiência originária do sentir. O filósofo adota um percurso filosófico cujo fim é uma reabilitação ontológica do sensível. Por esse caminho, ele renuncia os conceitos de sujeito e objeto como instâncias distintas. Nesse sentido, a filosofia de Merleau-Ponty não somente alcança o status de crítica, mas, sobretudo, se renova e permanece aberta. Com o conceito de carne podemos dizer que o corpo se liga ao mundo e o mundo se liga ao corpo de forma ininterrupta e antidualista. Nasce, assim, uma maneira de se pensar o corpo segundo a carne. É no Le visible et l’invisible que esse modo de pensar o sensível se realiza com todo o seu vigor. Com base nessa nova perspectiva filosófica, o corpo próprio ou o corpo-sujeito é concebido como “massa interiormente trabalhada”, que não estabelece uma fronteira nítida entre o dentro e o fora ou entre sujeito e objeto (MERLEAU-PONTY).”
7- A filosofia não pode se afastar do sensível, do sensório, da percepção. Só assim ela se manterá como atividade criativa e criadora.
“O imprevisível de uma percepção renovada nasce da certeza de que o ato de filosofar nunca pode se apartar do sensível. Talvez considerando o sensível em sua radicalidade como presença insuperável, possamos abrir novos caminhos que tragam ventos de esperança para renovar a Filosofia. “Ressensorializar” a atividade filosófica é o grande desafio de Merleau-Ponty. Tal desafio visa retirar o filosofar das repetições esquemáticas e colocá-lo no âmbito da ação criativa. No lugar de desapegar-se da percepção, o chamado aqui é para se deixar contagiar pela percepção.”
Concluindo, esta filosofia que valoriza e prioriza a percepção, o sentir humano, em detrimento de um processo histórico de hipervalorização do intelecto, do cognitivo e da razão, abre a filosofia ocidental para outros saberes como a arte, a literatura, as filosofias orientais, incluindo as experiências místicas e religiosas. É isso que, ao meu ver, faz da filosofia de Merleau-Ponty algo interessantíssimo e muito atual, mesmo não sendo a primeira formulação filosófica a fazer esse movimento de abertura para o sensível.
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Marcio Sales Saraiva é escrevinhador.