sexta-feira, 20 de outubro de 2017

O moralismo cria o contexto perfeito para o abuso sexual de crianças. Não é a nudez. Não precisa de gente pelada para haver abuso. Precisa da intenção de abusar, pode acontecer de roupa.

Uma amiga foi abusada pelo tio. Ela era pequena, o tio colocava ela no colo, na sala, diante da família toda. Ficava de pau duro, se esfregando nela. Um dia ela foi fazer uma pergunta pra mãe sobre isso. Levou um tapa na cara. A família toda muito religiosa.

O Brasil, país majoritariamente cristão e extremamente conservador, tem um dos maiores índices de abusos de crianças no mundo. Não é por acaso. A moralidade cristã faz da nossa população um bando de hipócritas compulsivos. O cristianismo é uma holding especializada em criar pecados e vender perdões. Como a máfia italiana - a propósito, muito devota - eles cobram pra proteger a população deles mesmos. Não venham culpar a performance. Não venham culpar o funk. Não venham culpar a arte. O Brasil cristão sempre gostou, e muito, de estuprar criancinhas. E sempre detestou ser lembrado disso. Se a arte faz alguma coisa é criar um plano de escape dessa moral venenosa.

Se alguém resolvesse seguir à risca as regras que o cristianismo impõe, não poderia viver em sociedade. Todo mundo sabe que não é viável. Mas o sistema que eles criaram é bem inteligente: não é viável, ninguém consegue, e é assim que as igrejas lucram. Dando culpa e vendendo conforto, dando culpa e vendendo conforto, como se fosse crack. Todo mundo faz, todo mundo finge que não viu o seu, todo mundo fica espionando os outros, todo mundo fica com medo de ir pro inferno, todo mundo precisa da igreja pra ser salvo, todo mundo fica aliviado, todo mundo começa a pecar de novo.

Há poucos meses um grupo de pais saiu às ruas de Rondônia querendo proibir um livro didático. O livro era de ciências. O motivo era uma ilustração de um pênis, no capítulo onde se tratava do aparelho reprodutivo. Uma das mães entrevistadas alegou que a ilustração era muito "avançada para a faixa etária do filho". Qual era a faixa etária? Chutem. 4? 5 anos de idade? Não, gente, 13. O filho dela tinha 13 anos e o livro era voltado ao 8º ano do ensino fundamental.

Agora, digamos que uma criança como esse menino sofresse um abuso - torço pra que não, embora as estatísticas concorram  pra isso - como ele poderia contar isso pra uma bosta de mãe dessas, que prefere se convencer de que seu filho de 13 anos não sabe que tem pênis do que lidar com a realidade? É assim que os abusos se perpetuam. Pela moralidade. Essa moralidade torta, doente, autopunitiva, mentirosa, hipócrita, que encontra um prazer doloroso na culpa e na vigília dos pecados alheios.

Cada vez que eu vejo um comentário "em defesa das nossas crianças" eu tenho vontade de ir lá e chutar a boca da pessoa pessoalmente. Os brasileiros estão pouco se importando "as nossas crianças". Quando duas meninas são estupradas por oito homens adultos na Bahia, são chamadas de vagabundas e ameçadas até terem que mudar de cidade. Quando políticos administram redes de prostituição e tráfico infantil, se reelegem, são condenados e descondenados, ficam soltos. Quando os casos acontecem nas suas famílias, ficam em silêncio, preferem não falar nada. E se as crianças forem indígenas, pretas, pobres, nas periferias das cidades, são até capazes de dar uma risadinha safada. São uns bostas.

Falam "deixem as nossas crianças", "deixem as crianças serem crianças", "não falem de homossexualidade com as nossas crianças", "não deixem as nossas crianças saberem que corpo existe", "tirem sua arte de perto das nossas crianças". E largam as crianças ignorantes, sem saber de nada, reprimidas, com medo de si mesmas, de tudo, sem coragem de perguntar nada, de falar nada, vulneráveis. Fazem filhos por obrigação, não cumprem com a responsabilidade de entender e conversar com os filhos, não querem que ninguém converse, porque são preguiçosos demais pra lidar com isso. São uns bostas. Uns bostas que acham que as crianças são propriedade deles. Não mexam com os nossos impostos, não mexam com as nossas crianças. Pra eles é a mesma coisa, propriedade.

Tive uma babá que engravidou aos 16. O cara tinha uns 30 e poucos, era primo dela. Ela cuidava de mim quando eu tinha uns nove, oito anos. Falava de sexo o dia inteiro, sem parar. Sabia todas as piadas mais sujas, trazia as revistas pornográficas dos irmãos dela pra me mostrar. A gente ficava lendo os contos eróticos. Só que nem eu nem ela conseguíamos entender nada daquilo direito. A gente achava que pinto era oco, não conseguia entender direito onde entrava, achava que entrava por um buraco e saía por outro. Não tinha ninguém pra explicar. E nenhum dos dois fazia nenhuma relação entre aquilo e gravidez. Quando ela engravidou já não trabalhava mais lá em casa. Uns meses depois que o bebê nasceu encontrei com ela na rua. Ela me contou que foi descobrir só com sete meses. Achava que era verme. Mas não entendia como tinha acontecido. Não sabia que o cara fazer xixi dentro dela engravidava. Obviamente o cara sumiu da cidade, ela ficou com o bebê sozinha. Se tivesse abortado, seria chamada de assassina.

Uma menina de nove anos era estuprada pelo padrasto. Ficou grávida, de gêmeos. Uma menina de nove anos, pesando pouco mais de 30kg, grávida de gêmeos. O que os nossos bons cristãos, nossas famílias de bem fizeram? Se mobilizaram? Se mobilizaram sim, pra acabar com a vida da menina. Quando ela foi ao hospital abortar, amparada pela mãe e pelas duas situações legais em que o procedimento é permitido - gravidez decorrente de estupro E com risco de vida  à gestante - estavam lá as nossas boas famílias, protestando, querendo impedir. Querendo fazer uma menina de nove anos levar até o final uma gravidez de risco, decorrente de um estupro, mesmo que ela morresse, porque aborto é assassinato. Assassinos são eles. E estupradores. E porcos. Como foi porco aquele pedaço de esterco mofado chamado Dom José Cardoso Sobrinho, Arcebispo do Recife, cuja única iniciativa diante do ocorrido foi pedir a excomunhão de todos os integrantes da equipe médica. Oferecer uma ajuda, um dinheiro? Se inteirar da situação? Criar um fundo pra beneficiar crianças vítimas de abuso? Nã-não. Excomunhão. É essa a contribuição que ele pode fornecer. E ainda tá vivo o desgraçado. Que morra com muita dor. Muita. São meus votos. Pra ele e pra cada um dos bandidos que foi pra frente daquele hospital protestar.

Agora eu não tenho dó de moralista. Não tenho um pingo de afeto. Se a gente quer dividir o mundo entre cidadãos de bem e degenerados, já escolhi o meu lado faz tempo. Ou escolheram pra mim, porque eu nunca ia aguentar aquele perfume barato de hipocrisia e desodorante masculino. Não quero conciliação com essa gente, quero guerra, quero treta. Quero estar nos pesadelos deles. Onde eu puder e onde eu estiver, vai ter guerra. Seja simbólica, seja jurídica, seja na porrada. Não vão ganhar, não têm a menor chance, porque são imbecis.

Postagem de Dalvinha Brandão, no Facebook, dia 12 de outubro de 2017.
São as minhas idênticas dores e ideias!