quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Vc não foi, vc foi levada. Vc não sentiu prazer, vc foi estimulada para além da sua compreensão, da sua permissão, da sua vontade e da sua capacidade de lutar contra. Não há nenhuma forma de remédio para curar suas lembranças, te fazer esquecer ou te fazer ao menos diminuir a dor. Não há. Eu não posso te dizer o que não existe. Mas existe um meio de vc amar tanto a si mesma que esse fantasma se afaste da sua cabeça, não como quem esquece MAS SIM COMO QUEM SE PERDOA. Por favor, perdoe a si mesma! Vc não fez nada, nada veio de vc, nenhuma característica sua ou qualquer que fosse sua postura, nada freiaria esse monstro. Homens quando desejam oprimir, violentar, destruir e assujeitar mulheres NÃO PARAM POR NADA. O que ele fez foi por pura perversidade, maldade e má índole. Ele se aproveitou da sua inocência, da sua inexperiência, da sua falta de força, da sua incapacidade biológica, da sua ingenuidade racional. Não há como uma criança de 12 anos lutar contra um monstro, contra seu maior inimigo. Vc foi vítima de um monstro. Não há sequer uma dúvida disso. Infelizmente existem meninas que se tornam dependentes emocionalmente desses abusadores e depois levam essa forma de abuso como relacionamento afetivo, quando é puro ato de dominação e de deformação. Se um monstro desse pudesse te matava fisicamente, mas como não pode um pedacinho de vc ele destruiu por um tempo: a sua paz. No entanto, eu não duvido que vc consegue RECONSTRUIR-SE, REENCONTRAR ESSA PAZ É POSSÍVEL. Encontre grupos de apoio, rodas de mulheres abusadas, conversas em grupos de mulheres feministas e qualquer apoio coletivo. Não guarde mais a maldade desse monstro dentro de vc. Ela não é sua. É totalmente dele.

domingo, 16 de dezembro de 2018

Se eu pudesse agora
Eu te sonhava
Em minha noite
Em minha cama
Dentro da minha coberta
E te enrolava
Entre meus dedos
E te sentia
Chegar bem felina
Cheirando meu pescoço
E te pedia
Me nina
Me mima
Menina,
Me ensina
A te mimar
A te amar
A te sonhar
E te ninar
E te ouvia
Respirar de olhos apertados
E te sentia
Subir na minha vida
Dominar minha mente
Ferver minha pele
Deixar meu corpo
Todo refém de ti
Se eu pudesse
Agora mesmo te pegava
Te sonhava em cima de mim
E te enlaçava firmemente
Apesar do medo
Tenho em mente
Teu suor
Teu sussurro
Tenho teu gemer
E sinto um cheiro quente
Vindo das narinas ofegantes
Do teu peito saltitante
Delirante teu quadril
Tudo em ti treme
E faz um frio
Sou eu soprando
Eu te amo
Atrás dos teus ouvidos
Na tua nuca
Nos teus cabelos
Tão meus e tão negros
Vontade de ranger os dentes
E te soltar
Livre levemente
Cheirando teu pescoço
Suavemente
Tudo na gente
Nesse sonho
É quente
Ardente
Vivo
E encandescente
Sonho um dia
De noite
A gente.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

 a ciência nas humanidades tem relação com a subjetividade, isso é o que permite o paradigma histórico e dialético. Claro que a gravidade não é uma ciência, ela é uma realidade física. O lugar de fala é uma ciência, ele faz parte de um conceito científico que depende obviamente da subjetividade manifesta histórica e, inclusive, psicologicamente. Não se pode igualar as premissas aritméticas, físicas e químicas com as realidades humanas, apreciáveis nas ciências ditas humanitas. Ninguém irá questionar a princípio de que a gravidade existe, mesmo assim são muitas as discussões científicas sobre os desdobramentos dessa realidade, e nestes casos a historicidade científica se aplica no que é possível compreender e no que ainda não é possível. Nas ciências humanas não lidamos com objetos, com abstrações apartadas do contexto e da subjetividade inclusive que lhe interpreta (como eu disse, é preciso conhecer o livro de professor Japiassú sobre a Ciências Humanas, ele reduziria possíveis lacunas no meu comentário). Quando a palavra fato aparece no seu comentário, ela deixa de ser fato histórico e passa a ser fato absoluto, mas não é sempre assim, principalmente dentro das ciências humanas - exatamente o ambiente acadêmico de onde saiu o artigo em questão. Eu jamais teria a mesma postura analítica diante de um fato físico, químico ou de questões matemáticas, não é está a área do conhecimento a qual estamos examinando especificamente. Quando vc traz a discussão sobre a percepção do real, ou "apreensão do real" eu não pude silenciar em mim a voz de Lacan e a máxima psicanalítica dele sobre a incapacidade da apreensão do real. Para essa ciência humana (psicanálise lacaniana), o real é inatingível mesmo em um esforço teórico.  Então, não concordo com sua afirmação sobre o real, embora a palavra realidade estivesse de alguma forma - talvez - mais adequada ao seu contexto afirmativo. Não considero a ciência humana um relativismo epistemológico, e considero o seu comentário uma anticiência porque desqualifica uma área fundamental e funcional do saber científico. As descobertas de Newton são fatos científicos abstratos e as ciências humanas consistem em fatos históricos e subjetivos (no sentido de relacionados às construções dos sujeitos no mundo, é sobre o estado de coisas e não o estado das coisas, no sentido de Wittgenstein). A historicidade, ao contrário do que vc defende não é um limite, mas um aspecto formador que não pode ser ignorado sob pena de - neste caso, sim - restringir, limitar a capacidade analítica do objeto social, histórico e subjetivo. Se vc se opõe ao que a epistemologia da filosofia contemporânea usa como meio de análise, esse é um viés metodológico seu, não precisa ser radicalizado como a única forma verdadeira de se fazer ciência. Não é mesmo? Descarte é sábio em propor em uma das suas últimas discussões teóricas a premissa científica da dúvida. Duvidar é preciso, inclusive duvidar de si mesmo. Por isso, não tem como negar que a ciência exige o debate dentro da realidade, do contexto ao qual se propõe. Lugar de fala não é um confessionário, não é um microfone na mão, nunca será um artifício comunicacional, pois é a comunicação indispensável para a progressão da narrativa histórica. O discurso da história, a partir do lugar de fala, se torna um meio de debates e conflitos subjetivos enriquecedores e mais autênticos, no sentido de representativos. Quando mais interlocutores são ouvidos, maior possibilidade de versões a história terá. O que enriquece a visão de mundo estabelecida pela interdiscursividade, leia-se Patrick Charaudeau sobre isso (Análise do discurso). Nenhuma subjetividade pode ser encarada como uma pessoa no mundo, isso é olhar para o discurso e não enxergar as vozes que lhe antecedem (leia-se Mikail Bahkitin sobre isso "Marxismo e filosofia da linguagem", "Estética da criação verbal"). Somos uma polifonia reverberada na voz de uma simples mulher (isso foi irônico). A experiência não pode ser transmissível, experiências não se transmitem, são sabidas e escutadas, jamais dadas como um objeto de troca material. Experiências são conhecidas e intermediadas para que sua existência seja validada. Um apagamento de experiência é um silenciamento de existências. Os negros foram apagadas da história do Brasil sobre a definição amordaçadora da palavra "escravo", na qual suas identidades foram omitidas criminosamente. Não se está falando de justiça, aqui, mas de ciências humanas. A ética é um princípio no método de muitas ciências humanas como já argumenta Karl Marx, entre outros tratando do discurso do método. A verdade não é obejto da ciência, ela é uma premissa revogável quando está dentro do debate. Reviga-se a verdade absoluta e coloca-se as verdades possíveis. Mesmo porque nem tudo é possível de ser apreensível para a racionalidade humana, somos limitados pela nossa vivência e historicidade. Essa é a premissa de uma ciência humana que se queira possível no século XXI. Por favor, não trate de nenhuma teoria social, subjetiva, linguística e comunicacional como se ela fosse verdade ou fato absoluto porque não é desse tipo de ciência que se está tratando mas da ciência das humanidades e seu olhar deve ser adequado para tal.

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

RABELAIS, obrigado por existir:

"Manguaceiros ilustres! Nobres toscos! Estimados aleijões! Sondas de jarros! Hastes de frascos! Registros rodados! Mordomos de névoas! Discípulos de São Martinho! Irmãos chapados! Irmãos cozidos! Irmãos insaciáveis e arrotadores chumbados! Banqueteiros e toneleiros! Trincadentes e trincalínguas! Vastas gorjas! Panças bombadas! Peidorreiros e trapaceiros! Irmãos doidos e preciosos! Por conclusão, notem bem o seguinte: se quiserem conservar nesta vida saúde e venustade, escutem atentamente estas seis regras:
 Nunca bebam sozinhos. A companhia de manguaceiros é uma corja altamente estimada e sua palavra baritonante tem peso considerável nos círculos de gendarmes. E mais: peguem dois bêbados; se um, empanturrado de névoa, perder o passo, o outro logo o levanta.
 Sigamos: ao despontar o dia, sob o luar virginal da alba, o melhor é brindar com Matusalém; ao meio dia com Baltazar; no crepúsculo choque a caneca com Nabucodonosor.
 Só beba do melhor. Beba do sólido. Plínio convida a distinguir os vinhos imbecis dos vinhos válidos; os bilontras vão preferir a segunda opção. Evitem os mequetrefes e mijos de burro. Evitem vinhos xexelentos.
 Evitem a cerveja. O poeta Basselin chama os manguaceiros de cerveja de bocas mijantes e diz com justeza que esse trago é bom para os flamengos e alemães, porque têm alma comum. E beber cerveja é causa de males: Júlio, o santo pai, bebeu cerveja e, mostrando sua barba, provocou grande indignação. Por isso, Erasmo de Rotterdam também diz que a cerveja seja infligida aos desgarrados e apóstatas, pois que é um castigo rudíssimo, tão pesada fora a falta.
 Porém mais que tudo, evitem a água: de todos os fluidos, é o mais virulento. Grande número de poetas e lansquenetes sucumbiram desafortunadamente por culpa dela. A água prejudica enormemente por causa de seu fedor e pestilência; Aristóteles, na História dos animais, narra como um grande número de gafanhotos, depois de beberem água, se corromperam e, por causa daquela horrível pestilência, abateram oitenta mil pessoas na cidade de Azi. E os membros da congregação da Santa Sé sabem muito bem o que estão fazendo quando vertem um funil de água nas tripas heréticas, porque quem bebe água tem sempre algo por esconder e dissimula alguma obscenidade.
 Vamos! Tomem exemplo no ensinamento de Jesus Cristo em Caná, do adorável milagre do Cordeiro.
 Evitem também o sangue. O sangue é pernicioso para o corpo humano, como testemunho diversos escritos e opúsculos medicinais e o camarada Avicena, também ele, recomenda a prática abundante da sangria. Reconhecemos que o sangue é um fluido gravemente nocivo porque esguicha e escorre só de furar alguém com um punhal; porque o corpo humano aproveita a mais ínfima oportunidade para se livrar desse veneno; e Marnardi de Ferrara nos ensina que devemos escutar o que o corpo nos ordena, pois através dele fala o Espírito Santo. Eis por que, erguendo o cálice, o Salvador disse: “Isto é o meu sangue”, o que prescreve que troquemos todo nosso sangue por vinho,  que nem uma cunha empurra a outra; e nós ficaremos saudáveis e adoraremos a Deus com fervor. ἄγιος κ᾽ἀθάνατος ὁ Θεός  [Santo Deus imortal].
 Ah! saibam também o seguinte: vocês têm a vida inteira para gargalhar e toda a morte para repousar."

[Trecho tirado do "Tratado do bom uso de vinho", cujo original francês se perdeu. A pintura é de Adriaen Brouwer, séc. XVII].