Alguma coisa, nesse "novo manto" para o Círio de 2022 me incomoda.
Nossa Senhora está branca feito uma "monarca" europeia; porém, a verdadeira pequenina IMAGEM ENCONTRADA pelo PESCADOR PLÁCIDO tem a cor da gente. É pequenina, é morena, feito o nome de nossa Belém, Cidade Morena, na perífrase amplamente conhecida por nós.
Ao invés de um manto de águas escuras, águas de Amazônia, águas cheias de vida, águas orgânicas, ele traz uma PALIDEZ, OUSO DIZER QUE ESSE MANTO ESTÁ LONGE DE SER O NOSSO AÇAÍ DO GROSSO, DO FORTE, DO SANGUE das nossas famílias e ancestralidades.
Está um manto de rosas róseo, pastel, opaco, sem lembrar de nossas árvores verdes escuras, de nossa madeira autêntica e tom de cor de pele do sol intenso de nosso lugar, o Pará. Não lembra a nossa bandeira, cabanagem, cabanos e cabanas com mãos suadas e vermelhas a se confundirem entre mais fibras de uma corda que parece mais nossas veias fluviais (de rios e chuva).
Cadê a intensidade dessa Mulher?
Por que estás distante do sol da tua terra?
Por que não lembras as águas geledas intensas e escuras dos teus igarapés?
Por que tiraram a tua beleza e força amazônica, com esse manto (pomposo) que tem até murça (também chamada de "manteleta" ou "mozeta")?????
A manteleta ou murça é um acessório que veste majestades despóticas (tiranas), como os reis absolutistas da França, a cor reflete algum simbolismo, muitas vezes a "pureza" da realeza embranquecida europeia, o que era sinal de DIFERENÇA, de "raça pura" e destoa VERGONHOSAMENTE da MÃE DE JESUS, a humana, humilde, aldeã, refugiada e palestina, Maria de Nazaré.
Expliquem o que explicarem...a Nossa Senhora de Nazaré do Círio de Belém do Pará é ribeirinha, é mãe morena, é pés descalços na corda e na procissão; jamais seria uma realeza monárquica, o que ao meu ver é um insulto ao dogma católico de Maria, que na sua pequenez, assunta ao céu, resplandece humildade, humanidade e espiritualidade na simplicidade do que é ser cristã.
Deixo para reflexão um trecho sereno da Bíblia, no evangelho segundo São Lucas, capítulo 1, versículo 38: " eis aqui a serva do senhor. Faça-se em mim segundo a tua palavra"...
E, então, segue-se o belíssimo cântico de Maria a Deus em si:
" Minha alma proclama a grandeza do Senhor,
Meu espírito se alegra em Deus, meu salvador ,
Porque olhou para a humilhação de sua serva.
(...)
Ele realiza proezas com seu braço:
dispersa os soberbos de coração,
derruba do trono os poderosos
e eleva os humildes"
Lucas, 1: 46-52.
A mais do que isso, eu não sei o que dizer.
Não surpreende ninguém a Igreja Católica embranquecer, por costume catequético medievalesco mesmo. Embora os novos tempos temperem as vozes emergentes da contemporaneidade, o que se observa por exemplo em pronunciamentos oficiais do atual papa latino-americano, Francisco, chamado de Cardeal Jorge Mario Bergoglio. É na indignação mesmo da verbalização contra o silenciamento, contra o apagamento que até o óbvio tem que ser declarado sob o custo alto de que a omissão acorrenta, aliena e escraviza. É um cartaz, sabe. Parece neutro, "higiênico " ( ou seria eugênico?), limpinho e sóbrio. Quando o Círio em paradoxo é transbordamento, invasão mítica, estética e política, de uma gente ensolarada, misturada e comovida em múltiplas vertentes. Se unificar, unissonorizar, uniformizar...fica parecidinho com essa artificial embalagem que está falsificada mesmo. A dispersão, a divergência, a dissidência e a diversidade imanecem é nas mais verdadeiras e até espontâneas naturezas que o Círio acontece. São tantos Círios que o plural nos permite tentar transmitir a infinidade desse fenômeno, exuberantemente fiel a biodiversidade da Amazônia na gente.
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"Quebrem as correntes dos seus pensamentos e conseguirão quebrar as correntes do corpo..." ("A História de Fernão Capelo Gaivota" BACH, 1970, p. 122/3).
Hilda Freitas, Belém/PA