domingo, 22 de março de 2020

ela é a minha alvorada

A noite chegou com ela. Andaram uma vida inteira até o meu quarto. A demora não se sabe pelo relógio da sala. Parece sempre atrasada, moça. Acho que é essa ansiedade que nos domina.
Queria dormir no seu colo uma história de amor completa. Do primeiro ao último capítulo, ouvindo seu respirar cumprido. Não importa quantas linhas escritas ou quantas palavras, sequer se contam as letras. Apenas o seu ir e vir de inspiração e respiração ligeiras. Os pulmões em coro sabem o acalanto sob o meu travesseiro. Sobe o tom de ninar qualquer desejo nas horas ardendo em vibrantes sintonias.
Eu não sabia que ela andava junto ao tempo, ou que as fases da lua obedeciam a sua matriarquia. Ordena as estrelas e controla suas próprias primaveras. É dona e mãe severa de todas suas angústias e ânsias sonoras. Ela ergue o dia e sucumbe as minhas razões e prudências com suas manhas. Sou dela enquanto vibro em suas profundezas e silencio. Me afaga em suas mãos sem respeitar regras movidas por um temperamento doce e incontrolável.
Eu não queria mais acordar. A visão dela no quarto me amansa. Por que eu preciso tanto do sorriso dela para sonhar, para gozar e para amolecer inteira? São os olhos dela fechados alguma mágica que me hipnotiza? Eu queria tomá-la pelo braço e dizer "deita aqui do meu lado pro resto da vida". Não perguntaria nada, só diria em segredo uma breve serenata na sua boca.
Tenho mesmo tanta necessidade da sua presença? Não é física. É poética pura. Ela não tem efeito material no meu corpo? Claro que tem. É um despertar de tudo enquanto o mundo lá fora morreu. Mas sobretudo é poesia porque desprende as palavras prisioneiras. Elas escapam na direção dela, como se não fossem mais minhas. Sempre foram suas. É a musa na minha melodia desde o primeiro dia. Se eu cantar, foi porque ela me amanheceu.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

"Quebrem as correntes dos seus pensamentos e conseguirão quebrar as correntes do corpo..." ("A História de Fernão Capelo Gaivota" BACH, 1970, p. 122/3).
Hilda Freitas, Belém/PA