domingo, 20 de outubro de 2019

Ler é ouvir; ouvir leitura não é ler.

Em meus cursos de literatura, sobre prosa ou poesia, não abro mão de ler os textos em voz alta. Tenho a convicção de que, ao escrever, o autor aciona também sua fala, e conta não apenas com os olhos, mas com os ouvidos do leitor,  que devem captar o ritmo, os timbres, as inflexões, as pausas, as tonalidades afetivas dos textos. Esses textos são todos indicados no programa do  curso, já na primeira aula: quero que sejam lidos, ouvidos e estudados ANTES da minha leitura em voz alta. Esta será apresentada como uma INTERPRETAÇÃO, e é nessa forçosa condição que deve ser debatida. Ainda quando interpretado por um grande ator ou atriz,  por quem seja capaz de revelar e realçar muitas potencialidades expressivas da linguagem, um texto literário não dispensa o acolhimento inicial do leitor que lhe dará a forma de sua própria captação pessoal. O impacto da primeira leitura que cada um faz de um texto, marcada pelas naturais limitações de um contato ainda pouco refletido, não pode ser substituído pelo impacto de quem já o leu e agora pronuncia sua recepção pessoal. Se eu ouvir a gravação de um conto do Guimarães Rosa lido por Lima Duarte, estarei, obviamente,  ouvindo a leitura que faz Lima Duarte de Guimarães Rosa. Pode, evidentemente, ser belíssima e inspiradora. Ainda assim, não substitui aquela multiplicação virtual das leituras que brotam da voz de um autor que reconheço quando o leio e o ouço em meu momento de concentração. Não um momento solitário: um momento carregado da humanidade que o escritor estende a cada um que o leia,  adensando o que Adorno, tratando da recepção da poesia lírica, chamou de “corrente coletiva subterrânea”.

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"Quebrem as correntes dos seus pensamentos e conseguirão quebrar as correntes do corpo..." ("A História de Fernão Capelo Gaivota" BACH, 1970, p. 122/3).
Hilda Freitas, Belém/PA