sábado, 14 de setembro de 2019

Sobre "Dom Casmurro"

Conheça nossa análise sobre Bentinho e Capitu, o casal mais polêmico da história da literatura brasileira.

A excepcional história contada no livro “Dom Casmurro”. Uma das maiores obras da história da literatura da língua portuguesa, que vai muito além das questões sobre adultério.

Publicado em 1899, “Dom Casmurro” é um dos romances mais discutidos de Machado de Assis, sendo objeto de análise de grandes críticos literários, centenas de trabalhos acadêmicos e até mesmo de um julgamento de Capitu, organizado pela Folha de S. Paulo e comandado por grandes juristas e autores brasileiros, por ocasião da comemoração do centenário de publicação da obra.
Narrado em primeira pessoa por Bento Santiago, o livro tem início com o narrador falando sobre o motivo de ter recebido o apelido de “Dom Casmurro” e explicando que seu objetivo ao contar essa história é “atar as duas pontas da vida”. A partir daí, ele passa a contar sobre sua trajetória, focando a narrativa no seu relacionamento com Capitu, menina que morava em uma casa ao lado da sua e que se tornara o grande amor de sua vida.
Rico e criado sob a proteção da mãe, D. Glória, Bentinho revela-se desde muito cedo como alguém totalmente dependente, muito fantasioso e incapaz de tomar decisões sozinho. Vivendo apenas com a mãe, seu tio Cosme, sua prima Justina e o agregado José Dias, o narrador vai deixando que sua vida seja por eles conduzida, até que sua mãe decide enviá-lo ao seminário para pagar uma promessa que havia feito após perder o primeiro filho.
Apaixonado por Capitu e sem a menor vocação religiosa, Bentinho não tem interesse em tornar-se padre, mas deixa a cargo de José Dias e de Capitu a formulação de ideias para livrá-lo do destino que lhe reservara sua mãe.
No seminário, Bentinho conhece Escobar e tornam-se grandes amigos e, para azar de José Dias, será dele a ideia que livrará o narrador da carreira religiosa e permitirá que ele se forme em Direito e se case com Capitu.
Escobar casa-se com Sancha, a melhor amiga de Capitu, e os dois casais vivem momentos de grande felicidade, especialmente após o nascimento de Ezequiel, filho de Capitu e Bentinho e de Capituzinha, filha de Sancha e Escobar.
Essa felicidade, no entanto, será dissolvida quando Escobar morre afogado na praia e, no velório de seu melhor amigo, Bentinho vê nas lágrimas de Capitu indícios de que ela era amante de Escobar. Desse momento em diante, o narrador passa a reconstruir em sua memória uma série de outros sinais que pudessem provar que Capitu realmente o traía, chegando a afirmar que seu filho era muito semelhante ao amigo morto e, portanto, deveria ser filho de Escobar.
Completamente dominado por essa suspeita, Bentinho envia Capitu e Ezequiel para a Europa, nunca mais voltando a ver a esposa, a qual viverá na Europa até a sua morte. Anos mais tarde, seu filho morre de febre tifoide em Jerusalém, Bentinho, assim, chega à velhice completamente sozinho e amargurado, tornando-se um homem extremamente fechado, um grande casmurro, como sugere o apelido que lhe colocam e que dá título ao livro. 
Muito mais do que um romance sobre adultério, “Dom Casmurro” é uma análise do comportamento humano e de como são construídas as nossas verdades. Embora não tenha nenhuma prova concreta da traição, não é isso que importa para Bentinho, ele construiu a sua verdade e, a partir desse momento, todas as suas ações estarão voltadas para provar essa verdade. Desse modo, os “olhos de ressaca” de Capitu, que tanto encantavam o Bentinho adolescente e apaixonado, passam a ser vistos como “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, tal qual lhe teria alertado José Dias ao lhe falar sobre sua amada. São esses mesmos olhos que levam Bentinho a suspeitar da traição, olhos que “fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã”.
Em toda a sua genialidade, Machado de Assis constrói um narrador nada confiável, que, diante de toda a força que dizia emanar de Capitu, tira-lhe a voz e apresenta todos os fatos apenas da sua perspectiva, não permitindo a defesa da esposa e reconstruindo todas as suas reminiscências de modo que ela pareça culpada. Em um exercício constante de tentar provar que fora traído, Bentinho revela-se alguém incapaz de lidar consigo mesmo, conforme ele afirma, muito mais do que lidar com a falta das pessoas que passaram por sua vida, ele precisa lidar com o fato de que falta ele mesmo, “e esta lacuna é tudo”.
Como diria José Dias, “Dom Casmurro” é um romance grandiosíssimo, não por tratar do adultério, tema tão recorrente entre os realistas, mas por ser um precioso exemplar do talento machadiano em descrever as profundezas da alma humana e da sociedade da época em que viveu.

Arte - Rodrigo Rosa

Texto - Adriana de Paula/ Joel Paviotti

Meu comentário:

Vejo ainda uma crítica velada ao narrador personagem, nas entrelinhas de cada descrição do seu criador (o autor por trás das engenhosas armadilhas às quais Bentinho cai em si e não se levanta). Ou seja, vejo ainda a crítica ao método romântico de enxergar a narrativa, a partir do qual sempre se imprime a tendência do narrador (mesmo quando ele narra o fato em 3a pessoa). Talvez, exista em Machado uma tendência em defender através da ligeira passionalidade de Bentinho como não se deve narrar um fato, de modo que exista nesta mesma função a defesa de um narrador mais analítico, o qual veria os fatos de modo sociológico e não subjetivista e, por isso, limitado. Entendo que esse narrador analítico é proposto em Machado na ironização do anti-herói que se narra narcisicamente.
O que no século XXI já está sendo criticado a fim de se encontrar a polifonia e com ela a historicidade estética na subjetividade negada e até renegada, sob o pressuposto de neutralidade científico-analítica. Ainda haverá muitas divergências e mais ainda encontros com o saber humanístico através da obra genial de um certo Bruxo do Cosme Velho...😍

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"Quebrem as correntes dos seus pensamentos e conseguirão quebrar as correntes do corpo..." ("A História de Fernão Capelo Gaivota" BACH, 1970, p. 122/3).
Hilda Freitas, Belém/PA