sábado, 6 de abril de 2019

Sobre as voltas que o mundo dá até que uma pessoa receba um diagnóstico e, principalmente, se reconheça como alguém emocionalmente adoecido. Este é o fragmento de um registro em prontuário de um atendimento que fiz recentemente:

“S1- Paciente traz exames que pedi ontem após nossa primeira conversa. Conta que seu quadro inicial era de tosse e dispnéia. Isso ocorreu há 3 anos. Na ocasião, recebeu diagnóstico de asma. Começou a usar s*lb*t*m*l, e uma injeção com doses altas de corticoide mensalmente (😩😳)o que lhe trazia uma “melhora temporária”. Há 2 anos, sentiu uma dor em FIE (abdome inferior) em pontada e no Pronto-atendimento disseram que ela havia tido um "pré-infarto" (palavras da paciente). Há 1 ano e meio iniciou quadro de dor torácica. Era uma dor posterior com irradiação anterior em aperto, não associada ao esforço físico. Paciente nega associação desta dor com sudorese fria ou dispnéia (falta de ar). A dor durava em média 1 dia inteiro e "melhorava sozinha". Fez tomografia de tórax em 18/10/17 que não evidenciou anormalidades.Realizou Teste ergométrico em 06/12/2017 que não evidenciou alterações sugestivas de isquemia miocárdica induzida pelo esforço. (Significa dizer que o exame não mostrou nenhum problema com o coração). Após todos estes exames, ainda foram pedidos Ecocardiograma, Cintilografia miocárdica (repouso e stress), cateterismo. A paciente não fez pois não tinha mais dinheiro pra seguir investigando seus sintomas. Ao mesmo tempo que vivenciava todo esse adoecimento, passava também pelo fim do seu relacionamento. Um casamento de 20 anos, repleto de episódios de violência física. Paciente me mostra fotos de hematomas no rosto e no corpo que guarda no seu celular.”

Ao final da consulta, a paciente me confidenciou que durante os primeiros momentos deste seu adoecimento, o agora ex-marido disse que não queria uma mulher doente do seu lado. Isso me fez entender muita coisa. Foi em uma mulher doente exatamente no que ela se transformou, tamanho era o seu desgosto ao viver na prisão que se tornou sua própria casa.

Ao final da consulta eu decidi perguntar a ela por que, depois de tantos anos indo a tantos profissionais, ela decidiu voltar ao posto pra levar os exames que eu havia pedido.

Ela respondeu que as palavras que eu havia dito a ela no nosso primeiro encontro acenderam uma esperança de que ela pudesse enfim dar um nome aquilo que sentia. No dia anterior eu disse a ela assim:

“Querida, não há quem passe intacta, incólume, por um relacionamento violento que dura 20 anos. Você é jovem, aparentemente saudável, trabalha, cuida dos filhos. O nosso corpo e a nossa mente não são entes separados. São um todo. Único. A tristeza adoece o corpo. Preciso, sim, ver estes exames, mas preciso mais ainda saber do que te afeta. O que de fato está te adoecendo.”

Hoje ela voltou e me disse:

“Doutora, eu preciso de uma psicóloga. Eu quase não dormi essa noite por que ontem eu fiquei pensando em mim quando eu ainda era uma menina. Eu via o meu pai bater em minha mãe e isso doía no fundo da minha alma. Eu perdi as contas de quantas vezes eu repeti: nunca vou arrumar um marido assim pra mim. E, o que eu fiz?”

Ela se viu. Se enxergou de dentro pra fora. E eu aprendi com ela a ser uma médica melhor. Pra ela.

Enxergar o outro. Está é a minha profissão.

De fé.

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"Quebrem as correntes dos seus pensamentos e conseguirão quebrar as correntes do corpo..." ("A História de Fernão Capelo Gaivota" BACH, 1970, p. 122/3).
Hilda Freitas, Belém/PA